segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Almada Negreiros

esta grandeza de não a ter
é mais pequena que a de não desejar tê-la

e se o preço de participar é grandeza
não contem comigo
não participo
não participo nem contra grandeza

nasci ar
em forma de gente

nasci luz
em forma de gente

não me compreendo
e respiro-me
e vejo-me textual

a forma de gente faz-me agir fora do que nasci ar
fora do que nasci luz

e nasci ar para forma de gente
e nasci luz para forma de gente

nasci antes de mim
antes de forma de gente

era génio antes de nascer
em forma de gente

a forma de gente não me deixa ser o génio que nasci

José de Almada Negreiros
Poemas
Assírio & Alvim


ENTRETANTO


bravo Platão bravo
bravo a essa tua dos poetas fora da república
deixa que te diga
essa tua é de amigo Banana
toda a gente o sabia

mas tiveste a necessidade de dizê-la tu
e então o caso muda de figura

há a república e há a poesia
ambas são a mesma coisa no fim
e metade-metade é zero-nada

bravo a hoje bravo
bravo a esta nossa da república fora da poesia
esta nossa é de amigo Banana
toda a gente o sabia

mas temos a necessidade de dizê-la nós
e então o caso muda de figura

dizê-la nós a quem? a nós
«entretanto» nada temos a dizer à república
ela dobra o outro Cabo da Boa Esperança

encontrar-nos-emos ou não e é tudo

«entretanto» nascem poetas e republicanos
sem ser possível só poetas ou só republicanos
nem ambos lado-a-lado

«entretanto» não será possível reconhecer irmãos senão vizinhos
o nosso espelho fragmentado

a combinação é diabólica ou divina
haver fora da república lugar de poetas

o mundo é de ambos
não é território mais território
isto é
não há o mundo da república mais o mundo dos poetas
poesia e república são a lua-nova uma da outra
não haveria mundo se não houvesse gente
e o mundo só cabe à-vez em cada pessoa
sem máquina registradora disto
senão pela própria pessoa ela-mesma

e foi então que um dia chegou a palavra vocação

a vez do mundo em cada pessoa
a voz da vez de cada um
a voz antes do falar
a voz da memória do antes de havermos nascido para a memória do «entretanto»
da vez

o único poder que diz respeito a um mesmo
«vós sois deuses» (Cristo)
a única defesa de cada um à nascença, na circunstância e no extremo

tu-cá-tu-lá com a vocação é tudo o que se pede
e depois de ter chegado a palavra vocação vieram todas as outras

Vocação: a vez, o «entretanto», o agir
poetas e república o agir difere
agir é o que se pode
e também o que ainda não se pode
também o destronamento do impossível
o estanque deslocável cada vez mais para lá !

José de Almada Negreiros
Poemas
Assírio & Alvim

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