domingo, 24 de agosto de 2008

Siza Vieira


Projectou Portugal para o mundo da arquitectura internacional. A lista de obras é infindável e desde o início da carreira que o seu risco criou polémica pela inesperada ousadia das soluções arquitectónicas. Foi responsável pela recuperação do Chiado e a renovação da Praça dos Aliados, desenhou Serralves e o Pavilhão de Portugal, passou por Madrid, Berlim, Amesterdão... O próximo destino é Milão, depois do Brasil

Os únicos clientes que não reclamam da sua arquitectura são os que repousam nos três túmulos que projectou...

Porque não podem senão, provavelmente, reclamavam. A construção da arquitectura deve conter muito diálogo e por isso existe o desencontro e a contradição. Se digo "A" e respondem "A", não vale a pena haver diálogo. É o caso dos mortos...

Porque desenhou esses túmulos?

Os dois que desenhei foram encomendados pelas famílias e o outro, do Eugénio de Andrade, foi-me pedido. São o mais simples possível como julgo que agradaria às pessoas. O desenhar à pequena escala é importantíssimo para o fazer à grande escala - o contrário também é verdade - e exercitar a aprendizagem do arquitecto. A arquitectura não é a expressão da personalidade de um artista como é a pintura ou a escultura.

A sua avó foi a sua primeira cliente ao encomendar-lhe a reforma da cozinha lá de casa...

É verdade. Desde que me lembro fazia desenhos como todas as crianças mas havia um tio que me animava a desenhar. Por sinal, um tio que era uma negação a desenhar mas que me sentava ao colo e dizia "desenha lá um cavalo". E ele fazia um cavalo muito mal feito e eu outro também muito mal feito mas fui-me habituando a desenhar apesar de a minha ideia era de ser escultor. Só que isso não era muito bem visto na altura devido à vida boémia e ganhar-se pouco dinheiro, de maneira que decidi ir para Arquitectura na Escola de Belas Artes, que também não era muito nobre mas mais sério, sempre com a intenção de depois mudar.

E aí recebeu a encomenda da avó?

Isso foi em 1952! Era preciso fazer umas obras e a minha avó perguntou-me "porque é que não fazes tu?" E eu fiquei entusiasmado e vivi muito essa experiência porque envolvia o desenho dos móveis, o colocar das máquinas e uma chaminé que eu desenhei em vidro, que na altura achei que era um prodígio da alta tecnologia, tal como um candeeiro de luz fluorescente. Era um desenho muito baseado em coisas que já tinha visto na Bauhaus, as paredes eram pintadas de azul claro e tinha um azulejo branco. Ainda hoje está como eu a fiz...

Era inovador para a altura!

Para mim era.

A Bauhaus influenciou-o muito nessa época?

Influenciou toda a gente e muito na Escola de Belas Artes porque o director, o mestre Carlos Ramos, era também um grande admirador da Bauhaus enquanto sistema de ensino. Ele foi nomeado em 1952, quando eu já estava no terceiro ano, e coincidiu com a reforma de uma parte do corpo docente. Teve a sabedoria de escolher jovens arquitectos, que se viriam a revelar como os melhores no Porto, como assistentes e renovou a escola e o sistema de ensino.

Os portugueses têm mau gosto?

É sempre discutível e subjectivo o que é o gosto mas não considero o português particularmente mau nesse aspecto. Não gosto muito de discutir um tema na arquitectura sob esse ponto de vista, é muito ambíguo, mas acho que se encontram tantas obras que um certo tipo de pessoas pode classificar como de muito mau gosto tanto em Portugal como em França, na Itália e por aí afora à excepção dos países do Norte ou da Inglaterra!

O que é particular em Portugal é o descontrolo no uso do território e isso confirma-se quando uma pessoa passa sobre Espanha, em Castela e não no Sul, e entra no país pelo norte onde se constata logo a falta de planeamento. É uma trapalhada, com casinhas espalhadas por toda a parte, enquanto em Castela se via terreno cultivado e uns núcleos - uma vila, uma cidade - de onde saem estradas para norte e sul. Em Portugal, não existe esse controlo e isso é penalizador.

Somos criadores do estilo casa do emigrante!

Sim, oiço essa expressão - casa do emigrante - mas em boa verdade não é um problema limitado aos emigrantes porque não há uma arquitectura própria deles, é geral, e as suas casas foram feitas por desenhadores locais! O que em Portugal é particularmente grave e é esse descontrolo que está a alastrar na orla marítima, a região que recebe mais fundos, mais educação e mais meios. É aí que está o consumo descontrolado do território. Situação que enquanto ministro do Ambiente, o actual primeiro-ministro não permitia...Neste momento há uma situação muito preocupante porque foi criada uma lei que não permitia construir a menos de 500 metros da costa mas logo surgiu outro programa que é o PIN (Projectos de Interesse Nacional) que faz com que determinadas promoções - provavelmente de interesse nacional! - ultrapassem essa restrição. Veremos quais serão esses programas de interesse nacional...

As casas de emigrante eram projectadas por desenhadores ou engenheiros. A disputa entre o papel do arquitecto e do engenheiro já foi ultrapassada?

Essa polémica foi muito viva numa altura em que havia pouquíssimos arquitectos, em que todo o poder de realização pertencia aos engenheiros e bastava a sua assinatura. Isso passou porque a própria complexidade da construção obriga à especialização e desapareceu esse apetite de concentração do trabalho numas mãos só. Recentemente, há como que um reavivar da questão devido à regulamentação do papel das profissões que foi aprovada na generalidade no Parlamento sem que muitos dos arquitectos o soubessem - aí a falta é da Ordem dos Arquitectos, ou da nossa falta de participação nos trabalhos - e muitos de nós tomámos conhecimento pelos jornais do que se passava. Na altura percebeu-se que era uma coisa absurda porque estabeleceu-se que os arquitectos só fazem edifícios, os espaços públicos serão feitos por paisagistas e o interior por arquitectos de interior e por aí fora, o que é a negação do que é a arquitectura: a participação de diferentes profissionais num todo. Outro erro foi a liberalização das tabelas de honorários de cada profissão, antes era uma coisa claríssima e tinha um controlo ético que se alguém cobrasse abaixo da tabela era chamado a uma comissão da Ordem. Isso acabou e há gente que faz descontos nos seus honorários que impossibilitam o estudo do projecto. Há muitos que são feitos em cima do joelho ou directamente no computador porque é impossível fazer obra competente com as exigências que há actualmente em relação a honorários.

Não é fácil ser-se arquitecto em Portugal?

O acesso ao trabalho dos mais novos é difícil e não deixa de ser triste que quando uma pessoa está cheia de energia tenha dificuldade em obtê-lo. Quando já está a necessitar de um ritmo diferente começa a aparecer trabalho, o que resulta numa distribuição muito desigual. E depois há os concursos, mas os resultados destes também acho que não têm sido especialmente bons.

Quer dizer que os resultados são viciados?

Eu não lhe chamo viciados mas há uma coisa que se verifica internacionalmente: como é obrigatório fazer concurso para as obras públicas, acontece com muita frequência que os políticos de determinada cidade queiram o arquitecto X para a pôr no mapa e usem os protagonistas de qualidade para o projecto e ao mesmo tempo para o show necessário. Então, se é importante a cidade ter esse arquitecto X, mas como é obrigada a fazer um concurso, chama outros também, mas ganha o escolhido pela cidade. Isso é frequentíssimo.

Também se sente usado nesses processos de escolha por parte dos políticos?

Eu agora não faço concursos. Já os fiz e fiquei desencantado porque uma coisa é que o que se apresenta - tem de ser com grande impacto visual, embora possa não corresponder a uma solução correcta - e serve para ganhar o concurso mas depois o que realmente se projecta é refeito - serviu para impressionar - e já não é nada daquilo. Neste momento não faço concursos por essa razão mas também porque não tenho dificuldade de acesso a trabalho.

O canal Biografia passou um documentário sobre a sua obra. Houve gente chocada porque o programa era feito por espanhóis!

Não vejo mal nisso, até porque eventualmente têm mais a disponibilidade económica. Espanha tem uma actividade tremenda que, por razões óbvias, não é fácil haver em Portugal e têm um grande interesse pelos detalhes da arquitectura pombalina, assim como em relação ao Pavilhão de Portugal. Vem muita gente visitá-lo mas se abrirmos um guia turístico não se vê lá e quem vai à Expo à noite vê luz por todos os lados, mas o Pavilhão de Portugal e a praça estão às escuras.

Não se sente reconhecido em Portugal?

Sinto-me reconhecido por muita gente e não reconhecido por alguns. É natural, não se pode agradar a todos e quando acontece é porque alguma coisa está mal.

Já recebeu um prémio Pritzker que só é dado a grandes arquitectos!

Sim, mas de uma certa forma também é por acaso. Aconteceu, podia não acontecer. Nem seria drama para mim se não acontecesse... Tudo o que seja prémios tem de ser encarado conforme a realidade: podiam ser atribuídos a A mas também podiam ser atribuídos a B. Depende do júri, do que é que se está a passar no país ou no mundo no momento, mas é uma coisa muito gratificante e fiquei satisfeitíssimo de ter o prémio.

Fica chocado quando convidam Frank Gehry para vir recuperar o Parque Mayer em vez de se beneficiar um arquitecto português?

Não, não fico nada. Em mim até seria uma contradição porque também trabalho lá fora. Frank Gehry é um grande arquitecto e naturalmente uma obra dele em Lisboa seria de alto interesse e reflexos. É como a obra do Koolhaas no Porto, que teve grande influência na vida da cidade, independentemente de se gostar ou não da arquitectura.

Acha que a falta de reconhecimento por alguns é uma questão regionalista. Porque vive no Porto em vez de viver em Lisboa?

Não, acontece. Nem sequer nos podemos lamentar. Le Corbusier - sem querer associar as situações - teve de ir trabalhar para o Brasil e Índia porque tinha péssima aceitação em França. O seu Bloco de Marselha esteve embargado e queriam demoli-lo e neste momento todas as suas obras estão classificadas como património mundial. E aquele homem sofreu muito mais que eu.

Mas tem sofrido muito nos últimos anos?

Nesse aspecto não.

Agora…

Nem tenho uma energia enorme ou uma ânsia de criar, pelo contrário, o meu ritmo de trabalho é um produzir mais pausado. Tenho tido as minhas oportunidades, outras perdem-se. É claro que se sofre quando depois de anos a fazer um projecto de execução do Stedelijk em Amesterdão e este não se realiza é um choque. Ou fazer um projecto de uma igreja em Roma e quando mudam o bispo a coisa não se faz. No momento custa mas depois temos outras preocupações. O que custa mais e dá algum sofrimento é começar a não existir controlo dos projectistas sobre a execução da obra, uma tendência que é geral, mas que em Portugal ainda não chegou a uma gravidade tal, e também a dificuldade em encontrar promotores que queiram mesmo qualidade.

Noto que há alguma mágoa que ainda não consegui identificar. Tem uma grande carreira, obra famosa. O que é que o faz sofrer?

Pelo contrário! Às vezes vou pela rua e vêm ter comigo, pessoas que eu não conheço. Há muita gente que gosta e há também muita gente que não gosta, pronto. Mas depois há sempre um clima de tensões, de interesses, etc., que dificultam o meu caminho e o dos outros. Não sou um caso isolado a ponto de ser dominado pela mágoa quando sei que os problemas que posso ter também têm em geral os arquitectos que estão empenhados na arquitectura.

Quando se olha para o Bairro da Malagueira, em Évora, faz lembrar algo de Le Corbusier...

Ora bem, já vi diversos críticos associar-me ao racionalismo, ao neo-racionalismo, ao vernacular, a uma certa forma do expressionismo, etc., etc. É claro que há ali isso tudo e há muito mais, mas posso dizer que o que recordo de influências em relação ao Bairro da Malagueira - e provavelmente nem são visíveis - foi uma visita que fiz a Pompeia. Mas essa maneira como iniciei o trabalho até desaparece no final.

Então é minimalista, modernista?...

Essa é outra referência que serve para tudo. Minimalismo significa restringir a muito pouco o que se utiliza na arquitectura e não sou assim. Era preciso terem ido dentro da minha cabeça e ver o que concorreu para chegar àquele resultado e interpretar muitas vezes como uma simplificação. E é o contrário.

Como é que dá início ao projecto?

O importante é dar início!

É com um esboço ou um pensamento?

Um esboço contém pensamento que possui muito instinto e reacção imediata. Comparo o projecto a tecer malha, é preciso apanhar a ponta. Normalmente lanço uma ideia em termos de imagem, antes sequer de dominar totalmente qual é o problema a resolver e, às vezes, até antes de visitar o local em que se situa. É como fazer uma escultura em argila, que muda completamente quando se aperta. Depois vai-se bombardeando com toda a informação, impressões e conhecimento.

Encontra uma palavra para definir a sua arquitectura?

Não. Arquitectura é arquitectura, ponto.

Sem comentários: