sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Manuel Resende

O sol incendeia

o sol incendeia o céu ao fundo
e as cigarras ainda têm os telemóveis ligados;
hélios, filho de zeus, cansado de céu claro,
vai beber sombra ao bosque, brinca com as folhas
e cai no chão dançando com os reflexos negros delas.

num canto da mata à esquerda espreitam árvores da sombra;
um homem e um cão seguem o seu caminho,
o cão à frente, perseguindo as próprias orelhas,
que só prova que sabe aonde vão:
é apenas um simples fim de tarde
habitual.

não estou na montanha como os filósofos,
mas não se pode dizer que esteja numa vulgar esplanada,
num café, sei lá, num sítio comercial.
não interessa, interessa, sim, aquela dança,
do sol, da sombra, do cão, do homem, da mata,
e interessa que isto é uma paz entre duas guerras.

bem, é claro,
podeis procurar à vontade o sangue
dos soldados desconhecidos,
que não o encontrareis.
não está no céu, o céu tem
uma capacidade regenerativa invulgar e
nem os maiores ciclones deixam nele marcas;
nas árvores também não,
as árvores são mais lentas, mas têm tal arte
de esconder os golpes do destino nos troncos e ramos torturados,
que em vão a ciência procurará nelas o rasto dos desastres
humanos;
as árvores são grandes, trabalham à escala dos séculos,
são calendários abstractos.
com a nossa estúpida arrogância serramos uma árvore e
na sua secção transversal vemos:
olha, aqui, foi a revolução francesa, ali,
foi quando o walter benjamin se suicidou acolá
o outro benjamin partiu para a guerra civil de espanha,
eis os jogos olímpicos de berlim, quando os nazis
inventaram a treta da chama olímpica;
bem, não se vê a maratona, foi há demasiado tempo
- dizemos nós -,
mas está aqui uma porrada de coisas.

está nada, não está lá nada.
está o que nós lá pomos.
as árvores trabalham para esconder os golpes,
têm o seu programa de crescer a todo o custo,
duma maneira ou doutra, e baralhar os rastos.

e então? então, continuo a dizer:
há um sol, um céu, uma mata, um homem e um cão, fora as
cigarras e os telemóveis,
num fim de tarde habitual,
e isto é uma paz entre duas guerras.
sei perfeitamente, e precisamente porque
conversei em muitas noites de insónia com as árvores,
que as árvores são mudas para certas coisas,
mas que por aqui passaram as paixões humanas,
que elas não confessam, mas passaram.

ora, ora, paixões humanas, é uma força de expressão:
cobiça, isso sim, cobiça, ambição desmedida
tráfico de escravos,
coisas dessas.

Sendo assim,
esta calma, este silêncio,
fora as cigarras,
o sol, a mata, o céu, o cão, o homem,
estão aqui
pelas guerras que aqui nao estao. .
É como se o grande escritor do universo
escrevesse a tinta branca
a nossa história passada.
bem, é o que sinto.

Manuel resende
Di Versos
Revista semestral de Poesia e Tradução
Edição Isabel Marques
2001

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