sexta-feira, 31 de outubro de 2008

"A Turma" de Laurent Cantet


"Este filme mostra o que se passa na escola"


EURICO DE BARROS

Entrevista.

Já está em exibição 'A Turma', de Laurent Cantet, que adapta o livro de François Bégaudeau ex-professor, jornalista e escritor, sobre um ano lectivo na vida de uma turma de um liceu de Paris. O filme deu à França a Palma de Ouro do Festival de Cannes. O DN entrevistou o realizador

A sua intenção inicial era realizar uma ficção sobre a escola, ou um documentário?

Sim, era uma ficção, e o que resta dela em A Turma é a história do jovem Souleymane e do conselho disciplinar a que ele é submetido. Mas li o livro do François Bégaudeau, depois conheci-o, percebi que se tratava de material documental interessante e propus-lhe interpretar a personagem do professor, que seria aquele que eu gostava de ter tido quando era estudante, e que corresponde ao que eu espero da escola.

E que é?

Um lugar onde se aprende, onde se adquirem conhecimentos, mas onde também aprendemos a pensar, a pensarmo-nos, a reflectirmos. É um lugar muito interessante de mostrar, e é também muito cinematográfico, por causa dos confrontos, dos diálogos, das tensões, da linguagem, que é o instrumento principal dos alunos, dos adolescentes, que lhes permite apropriarem-se do mundo. Temos que a ouvir bem.

E é uma palavra dita pelo professor e mal entendida pelos alunos que desencadeia o drama no filme e leva ao processo disciplinar a Souleymane...

Sim. Os professores também têm a sua linguagem e é preciso ver como é que essas duas linguagens, a deles e a dos alunos, conseguem coexistir. Por isso, a ideia de que a linguagem se tornasse no motor dos acontecimentos pareceu-me extremamente importante. Tudo se desencadeia a partir de uma palavra a mais dita pelo professor.

E isso ajuda também a mostrar a imperfeição dos professores. François é um bom professor, mas comete um deslize fatal, não é?

Exactamente. O professor não é um maître a penser imaculado, e ao meter-se numa justa verbal com os alunos - o que faz parte do seu quotidiano -, corre um grande risco.

Porquê este elenco com François Bégaudeau no papel dele mesmo, e alunos interpretados por alunos, professores e funcionários de um liceu parisiense, e até pelos pais daqueles?

Eu quis desde o início trabalhar com pessoas cuja vida estivesse em relação directa com as das personagens do filme: professores e alunos verdadeiros. E ir pedir a outro professor para fazer o papel de François, quando o tinha ali à mão, pareceu-me algo estranho.

E fez workshops com os alunos para eles poderem interpretar as suas respectivas personagens.

Sim, fizemos ateliers com eles todas as quartas-feiras à tarde ao longo do ano lectivo, nos quais improvisávamos em redor de situações que não eram as do filme, mas sim paralelas a ele, para que, quando fossemos rodar, eles não tivessem a impressão que estavam a repetir as interpretações. Cada quarta-feira, durante três horas, trabalhávamos as situações e discutíamo-las, víamos para onde podiam evoluir, eu dava-lhes indicações cada vez mais precisas. E filmava tudo, para não perder esse material e depois ver como poderíamos voltar a ele quando estivéssemos a escrever o argumento. Andámos sempre do computador para as imagens, e destas para o computador, numa roda viva.

O filme foi rodado mesmo no liceu?

Durante as férias de Verão desse ano escolar. Passámos oito meses a conhecermo-nos uns aos outros, a discutir e a criar as personagens em conjunto. Foi um trabalho decisivo para aquilo que se transformou no filme.

Ficou bem impressionado com o trabalho dos jovens?

Sim. Eu estou habituado a ter sempre actores não-profissionais nos meus filmes, por isso já me surpreendo menos do que outros realizadores perante uma situação destas. Sei que vou ter sempre surpresas muito boas. E a câmara intimida os jovens muito menos que os adultos. Não os formámos para serem actores, eles já eram o que são no filme. O que lhes demos foi método, hábitos de improvisação e modos de introduzir nessa improvisação aquilo que eu lhes pedia. Foi mais um treino.

Como definiria A Turma? É uma ficção documental? Um documentário ficcionado?

Eu diria que é uma ficção documentada, não documental. Fomos buscar as coisas à realidade, documentámo-nos e inspirámo-nos nela, mas depois refabricámos tudo. Gosto muito da recriação que fica muito próxima da realidade, mas nos possibilita olhar para ela, reflectir sobre ela, e não só repeti-la. E os alunos não estão necessariamente perto das personagens que interpretam, como é óbvio, não são iguais a elas.

A Turma não quer fazer doutrina sobre a escola, como tantos outros filme sobre o mesmo tema. Quer só mostrá-la por dentro.

Eu pensei este filme como uma resposta a todas as ideologias que asfixiam a escola. Quis abster-me de juízos de valor e apenas olhar e revelar o que lá se passa, fazer um estudo muito sistémico da escola, mostrar tudo aquilo que se joga lá dentro. E houve professores que tiveram dificuldades em receber um filme que é um espelho em que eles se revêem com algum embaraço. A minha ideia foi mostrar uma escola à imagem da sociedade que a rodeia, que faz parte do mundo e que repercute todos os seus problemas. E não podemos passar ao lado destes adolescentes, que são como uma panela em ebulição e são cada vez mais estigmatizados, reagindo com radicalismo aos estigmas. Esta panela pode explodir a qualquer momento, mas na escola também aprendemos a controlá-la.

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